Personagens peculiares, situações caricatas e longe da realidade, morte, violência, sexo e excrementos. Todos estes elementos surgem ao longo de "The Paperboy", o novo filme de Lee Daniels. Elogiado pela crítica por "Precious" (não confundir com o anel do Gollum), Daniels tem nesta adaptação da obra literária "The Paperboy", de Pete Dexter, um filme que promete dividir o público e a crítica, mesclando momentos de brilhantismo com alguma vulgaridade, criando um universo estilizado, povoado de personagens controversos e peculiares, dos quais sobressai uma Nicole Kidman como há muito tempo não a víamos.
É verdade. Cheia de botox, talento, muita sensualidade, Nicole Kidman surge com uma energia e empenho impressionante como Charlotte Bless, uma espécie de Barbie ninfomaníaca, que gosta de praguejar e fornicar, exibindo roupas berrantes que realçam as suas formas, enquanto procura ajudar o jornalista Ward Jansen (Matthew McConaughey) do Miami Times, o irmão deste, Jack Jansen (Zac Efron), e o colega do primeiro, Yardley Acheman (David Oyelowo), a investigarem os eventos que conduziram à morte do xerife local, um indivíduo conhecido pelo seu comportamento racista, e assim ilibarem Hillary Van Wetter (John Cusack), um indivíduo nebuloso que foi acusado do assassinato. A estrutura narrativa da obra pode ser dividida em três partes e perde um enorme fulgor a partir do último terço da segunda parte.
Na primeira parte somos apresentados ao assassinato do Xerife e aos personagens interpretados por Matthew McConaughey, Zac Efron, David Oyelowo e Nicole Kidman. Acompanhados muitas das vezes pela narração em off (e a quebrar a barreira com o espectador) de Anita Chester, a empregada doméstica negra interpretada por Macy Gray (surpreendentemente convincente), a narrativa procura inicialmente estabelecer este quarteto de personagens algo invulgares. Jack é um ex-nadador musculado que não sabe muito bem o que quer da vida e apaixona-se pela sensual e extravagante Charlotte, uma mulher que se distingue pelo seu vocabulário vulgar e gosto por sexo, enquanto procura salvar Van Wetter, o seu noivo, de ser preso, alegando ter em sua posse duas caixas com cartas que comprovam o facto deste sinistro personagem (um John Cusack num dos melhores desempenhos recentes) ser incapaz de ter assassinado o juiz. Por sua vez, Ward procura levar a cabo a investigação a este hediondo crime ao lado do irmão e de Acheman, um negro que lida com o preconceito racial contra os negros nos territórios sulistas norte-americanos, em particular Moat County, cujos habitantes são apresentados de forma estereotipada por Lee Daniels.
Na segunda parte este quarteto de peculiares personagens embrenha-se pela investigação, ao mesmo tempo que o tom leve e cómico da fase inicial começa a perder algum fulgor e a tornar-se mais negro, com Lee Daniels a preocupar-se em causar o choque junto do espectador, com a investigação em volta do assassinato a revelar-se cheia de episódios marcantes, sejam nos períodos da dita busca de evidências, seja nos momentos de lazer onde não falta uma Nicole Kidman a dar um show inesquecível, naquela que promete ser a segunda abertura de pernas mais famosa da história do cinema, enquanto John Cusack revela-se o parceiro ideal de cena. Aos momentos mais divertidos, regados com humor, sexo, piadas de cariz sexual, Daniels evidencia a violência, seja a mostrar um aligator a ser esventrado, seja um dos personagens a surgir brutalmente espancado. Na terceira parte, temos o nosso epílogo no qual o filme abraça o tom negro e surge algo dicotómico ao que fora apresentado inicialmente, com Lee Daniels a procurar revelar-se como um cineasta de transgressão, que tanto pode causar o riso como o choque no espectador.
Entre o riso e o choque, a violência e o sexo, a sensualidade de Nicole Kidman e os músculos de Zac Efron, "The Paperboy" revela-se uma obra à imagem da personagem de Kidman: exagerada, extravagante, atraente e sem se preocupar minimamente com a opinião alheia. Com uma representação estilizada da Florida rural e dos territórios sulistas norte-americanos, Lee Daniels apresenta com algum humor e violência um retrato sobre este território, no final da década de 60, não faltando o racismo em relação aos negros (sempre muito presente), o carácter conservador de vários dos personagens veteranos (representado na figura do pai de Jack), num filme que é difícil de catalogar num único género. Aos elementos ultrajantes de comédia, a violência chocante, o puro trash e o noir, "The Paperboy" é uma salganhada pouco coerente, que raramente se leva a sério e que facilmente consegue criar um estranho poder de sedução junto do espectador.
A sedução provocada por "The Paperboy" não é obra do acaso. Apesar de perder um grande fulgor na sua segunda metade, na qual Lee Daniels mostra alguma dificuldade em transitar de um tom mais leve para um filme algo negro, onde a morte e o perigo parecem pairar sobre os personagens, "The Paperboy" tem o mérito de apresentar uma Nicole Kidman com uma interpretação semelhante ao botox que paira pelo seu rosto, ou seja, enorme. Kidman é a alma deste filme. Longe do ar angelical, ou das personagens sofredoras, Kidman interpreta uma ninfomaníaca, uma Barbie versão trash que gosta de sexo e de presos, uma mulher cujas roupas coloridas e decotadas sobressaem o corpo da actriz e a sua sensualidade, enquanto esta fala de forma completamente desbocada com o seu sotaque sulista e conquista o jovem personagem interpretado por Zac Efron. Se Kidman é a alma do filme, importa salientar que o restante elenco consegue sobressair, com Lee Daniels a conseguir retirar o melhor que os elementos do seu elenco têm para dar, não faltando um John Cusack mais soturno e bizarro do que nunca, um Zac Efron longe do adolescente irritante de "High School Musical" e um Matthew McCounaughey carismático como sempre num papel que o leva a embrenhar-se pelos pântanos da Florida e a caminhar em direcção à desgraça.
Quem também parece estar quase sempre a caminhar em direcção à desgraça é Lee Daniels, nesta obra que surge recheada de situações caricatas e momentos inusitados, que deambula entre a arte e o trash, que se envolve em terrenos pantanosos mas consegue sair sempre destes com uma enorme argúcia ao raramente se levar a sério, criticando de forma irónica (e exagerada) temas como racismo, violência sexual, crime, ao mesmo tempo que nos apresenta cenas tão memoráveis como Nicole Kidman a urinar em cima de Zac Efron após este último ter sido atacado por alforrecas. Se as temáticas do filme e a forma como são apresentadas nem sempre resultam e podem causar alguma estranheza (algumas devido ao seu mau gosto), importa salientar que o caso muda de figura quando se trata do trabalho do director de fotografia Roberto Schaffer, recheado de cores saturadas, que incrementam a narrativa e procuram dar à obra um tom semelhante a um filme dos anos 70, incrementando uma história que procura provocar o choque e o desconforto no espectador com a mesma facilidade com que provoca um riso, mesmo que este seja miudinho. Divisor de opiniões, polémico, divertido, "The Paperboy" nunca se leva a sério, proporcionando ao espectador momentos de algum entretenimento, onde tudo pode acontecer e nada sai como o esperado.
Classificação: 3 em 5
Título original: “The Paperboy”.
Título em Portugal: “The Paperboy – Um Rapaz do Sul”.
Realizador: Lee Daniels.
Argumento: Lee Daniels e Peter Dexter.
Elenco: Nicole Kidman, Zac Efron, Matthew McConaughey, John Cusack, David Oyelowo, Scott Glenn, Macy Gray.
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