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Wednesday, 2 January 2013

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 Logo no início de 'Terra de Ninguém", Salomé Lamas pergunta a José Paulo Rodrigues Sobral de Figueiredo se este sabe o que está a ser feito. Este responde que não, que quer apenas contar a história da sua vida. No final do documentário, logo percebemos as razões para este querer expor a sua vida, tal a riqueza das suas supostas experiências. Mercenário a soldo, militar com ordem para matar, uma personalidade rígida, algo racista, este participou na Guerra Colonial como alferes miliciano nos Comandos, tendo cumprido a maior parte do serviço em Angola, apesar de uma passagem por Moçambique. Conhecido como "alferes granada" pelo seu lema de “cada sanzala uma granada", este logo salienta que apenas estava a combater o "terrorismo", embora mostre sempre algum gosto pelos actos cometidos, salientando com algum prazer o facto das vítimas das suas granadas parecerem "macacos a saltar" (expressão utilizada por Paulo, que não reflecte a opinião de quem escreve esta crítica).
 A história de Paulo intrinca-se ainda na História Portuguesa, quer durante o Estado Novo, quer na III República Portuguesa. No Estado Novo, este procurou colaborar na repressão efectuada nas províncias ultramarinas àquilo que considera o terrorismo, revelando um pouco a mentalidade de alguns (sublinhamos o alguns) sectores da sociedade portuguesa em relação aos movimentos de libertação africanos. Para este, tal como o estado português na época, os movimentos politizados como a FRELIMO em Moçambique, a UNITA e MPLA em Angola, entre outros, eram movimentos terroristas, algo que o protagonista salienta quando comenta o facto de o "terrorismo" ter rebentado em 1961, terroristas que apenas poderiam ser travados com os mesmos métodos (como este salienta "nunca fizemos um prisioneiro, só matar"). A violência parecia ser o modo de vida de Paulo e dos seus colegas, na maioria ex-reclusos a quem fora oferecida a liberdade se cumprissem serviço militar. A história de Paulo como alferes miliciano nos Comandos é apenas o primeiro episódio de vários momentos intensos da sua vida que relata a Salomé Lamas ao longo de quatro dias em "Terra de Ninguém".
O título adequa-se na perfeição a esta interessante figura que é Paulo. De forma intimista, o documentário desenrola-se numa "terra de ninguém", um cenário aparentemente anónimo, no qual Paulo relata de forma surpreendentemente à vontade alguns episódios da sua vida como militar, como mercenário e assassino a soldo, um modo de vida que não permitiu criar grandes raízes pelos territórios por onde passava. Durante o Estado Novo esteve em Angola e Moçambique para reprimir os movimentos politizados destes países. O objectivo não era prender, mas sim matar o inimigo. Após o 25 de Abril de 1974, regressa a Portugal e começa a trabalhar como segurança, tendo prestado serviços a figuras como Kaúlza de Arriaga e Francisco Sá Carneiro. No entanto, a vida de segurança não o motiva e cedo passa a trabalhar para instituições de outros países, tendo sido convidado pela CIA para participar como mercenário contra o movimento de Guerrilha em El Salvador, tendo posteriormente prestado serviços para o GAL (Grupo Antiterrorista de Libertação), onde tinha de assassinar os alvos estabelecidos. Não elimina pessoas inocentes, mas sim assassinos, entre os quais, elementos da ETA. Sem apresentar as confissões de Paulo de forma linear, "Terra de Ninguém" coloca este antigo mercenário a comentar vários episódios relevantes da sua vida, a responder às perguntas colocadas por Salomé Lamas ao longo de quatro dias, num cenário aparentemente anónimo, tão anónimo como a história do protagonista, que tem neste interessante documentário o seu principal testamento.
 Salomé Lamas tem em "Terra de Ninguém" um documentário intimista, onde a veracidade dos factos contados pelo seu entrevistado pouco interessa perante a riqueza da história que está a ser contada. Dividido em vários apontamentos, correspondentes a perguntas silenciosas (substituidas por números) colocadas a Paulo, torna-se particularmente interessante verificar como a história do protagonista se insere num contexto mais lato, ajudando a expor a complexidade e os paradoxos das revoluções e dos acontecimentos históricos. Essa complexidade pode-se verificar desde logo pela própria visão que Paulo tem em relação à Guerra Colonial. Algo racista, violento, este via nos movimentos politizados africanos o inimigo, os terroristas, estando distante daquela dimensão mais pacífica que vemos associada ao soldado português neste período, uma dimensão que é explorada neste documentário simples, mas cheio de interesse.
 Não se deixe enganar pela aparente simplicidade de 'Terra de Ninguém'. Entre os relatos de Paulo, os cenários simples (em grande parte do documentário podemos ver Paulo sentado a falar perante um fundo preto) e todo um despojo de adereço que surge compensado com o bom trabalho de fotografia, pelo discurso intenso de Paulo, enquanto o documentário logo aborda questões relacionadas com a história e a memória, com a realidade e a ficção, com as estruturas de poder que caem e as que surgem, ao mesmo tempo que encontramos a história de um homem marcado pelos seus actos. Mais do que estar preocupada com a veracidade dos factos contados por Paulo, a realizadora surge mais interessada na captação da memória, na verdade de Paulo, deixando sempre a dúvida entre o que é realidade e o que é ficção, mas também a certeza das experiências de vida riquíssimas do entrevistado. 
 Estas experiências riquíssimas de Paulo estão longe de poderem ser confirmadas com fontes, pois o interlocutor nunca chegou a apresentar provas factuais dos acontecimentos relatados, pelo que o seu discurso surge sempre carregado por enorme subjectividade, algo que leva a "Terra de Ninguém" esteja longe de um trabalho histórico cientificamente conduzido, mas próximos de uma fonte de inestimável valor sobre alguns episódios que surgem intrinsecamente ligados com a nossa história, com Salomé Lamas a conduzir com grande argúcia estes intensos momentos protagonizados por Paulo. Não deixa de ser curioso que um documentário sobre um mercenário, um assassino que tinha tudo para despertar o nosso desprezo, cedo se transforma num momento de especial interesse e reflexão para o espectador. Será que o discurso do mercenário é verdadeiro? Estaremos a ser enganados? Estará a contar a verdade? Várias são as questões colocadas ao longo do documentário, que peca por não apresentar um conjunto de fontes que confirmem a veracidade de alguns dos elementos contados, tirando um enorme peso ao discurso de Paulo. Será realidade ou ficção? Salomé Lamas parece exactamente querer lançar essa dúvida, algo que adensa essa dicotomia entre a realidade e a ficção, caminhando pelo limiar da história e da memória, mas tira peso ao discurso do protagonista. Salomé Lamas tem em "Terra de Ninguém" um documentário interessante, que vagueia entre o documento histórico e a ficção, entre a imaginação e a procura do real, tudo demonstrado de forma artística e pronta a absorver o espectador num documentário de grande valor.

Classificação: 3 (em 5).

Título: “Terra de Ninguém”.
Realizador: Salomé Lamas.
Elenco: José Paulo Rodrigues Sobral de Figueiredo.

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