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Tuesday, 1 January 2013

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 Obra-prima da literatura, "Os Miseráveis" de Victor Hugo já teve mais de uma dezena de adaptações cinematográficas, várias adaptações televisivas e um musical de sucesso na Broadway, entre outras. Livro capaz de causar emoções fortes, "Os Miseráveis" tem na adaptação realizada por Tom Hooper um musical extravagante e intenso que apela como poucos aos sentidos e sentimentos do espectador. Longe de ser uma adaptação cinematográfica conservadora e completamente fiel ao livro de Victor Hugo, o filme realizado por Hooper adapta o célebre musical criado por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, algo que resulta numa obra cinematográfica poderosa, quer a nível emocional, quer a nível visual.
 Nesta visão da obra de Victor Hugo, os personagens não se limitam a falar, estes cantam, entoam sentimentos que surgem das suas cordas vocais prontos a emocionar o espectador, proporcionando um espectáculo onde a história tocante e cheia de emoção encontra paralelo nos magníficos cenários e nos bons desempenhos do elenco, numa adaptação ambiciosa, que promete não deixar ninguém indiferente (para o melhor e para o pior). A apreciação deste filme vai depender exactamente do quanto o espectador é capaz de aceitar que raramente os personagens dialogam de forma comum e que as falas que trocam são maioritariamente cantadas. Ao princípio é algo que se estranha, mas depois entranha-se (sim, como o slogan da Coca-Cola), enquanto nos transporta para o interior da França, em 1815 (data da célebre Batalha de Waterloo), uma época se sentem os efeitos da Revolução de 1789, num território ainda muito marcado pela crise social e de valores, onde podemos encontrar um grupo de prisioneiros em plena cantoria enquanto se encontram a cumprir trabalhos forçados perante o olhar impassível e imponente de Javert, um inspector da polícia que se prepara para fazer a vida negra a Jean Valjean (Hugh Jackman), um indivíduo que esteve preso durante dezanove anos devido a ter roubado pão para alimentar a filha da irmã.
  Entre fugas frustradas que lhe valeram um aumentar da pena e momentos penosos, Valjean finalmente consegue a ansiada liberdade, ainda que condicional, sendo considerado um indivíduo perigoso, algo que vale a obrigação de se apresentar todos os meses perante as autoridades e não conseguir arranjar emprego, por ninguém querer empregar um indivíduo considerado perigoso. Sempre com Javert no seu encalço, Valjean encontra refúgio junto do Bispo de Digne. No entanto, Valjean rapidamente quebra a confiança do Bispo ao roubar as pratas da sua casa, sendo capturado pelas autoridades que logo pretendem fazer o ex-recluso voltar à prisão. O Bispo decide colocar em prática o ideal cristão de perdoar e dá as pratas a Valjean, salientando à polícia que ofereceu as pratas ao protagonista, dando-lhe assim uma oportunidade para encontrar a redenção. Perante este acto, Valjean tem uma epifania e decide começar uma nova vida, com uma nova identidade, continuando a ser perseguido por Javert, qual cão atrás do seu osso.
 Oito anos depois dos acontecimentos do inicio do filme, ou se preferirmos, do primeiro acto, Valjean assume uma nova identidade, conseguindo chegar a dono de uma fábrica e Maire da cidade de Montreuil-sur-Mer. Nesta fábrica trabalha a jovem Fantine (Anne Hathaway), que acaba por ser despedida da empresa devido às colegas e o contramestre terem descoberto que é mãe solteira, para além de todo um conjunto de boatos, algo que proporciona a sua queda no abismo, sendo obrigada a vender o seu cabelo, o(s) seu(s) dente(s) e o seu corpo para obter dinheiro, protagonizando um dos momentos altos do filme, um clímax onde Hathaway canta de forma delicada 'I Dreamed a Dream' e arrebata por completo o espectador, num momento de partir o coração. Com a saúde debilitada, Fantine acaba por falecer (provavelmente com tuberculose), criando um enorme sentimento de culpa em Valjean por não ter evitado o despedimento, que promete tomar conta de Cosette, filha da defunta e um elemento marcante na jornada de redenção do protagonista, enquanto procura escapar de Javert. Vários são os personagens que se cruzam por Jean Valjean, enquanto este procura proteger Cosette, lida com os acontecimentos do seu tempo e claro está é perseguido pelo seu antagonista.
 Depois de ter conquistado os Oscars de Melhor Realizador e Melhor Filme por "O Discurso do Rei", Tom Hooper regressa com um musical cheio de estilo, um espectáculo extravagante que procura despertar emoções e sensações, remetendo para uma história cheia de fantasia mas ao mesmo tempo eivada de elementos do real. Ao decidir adaptar o musical de sucesso, Tom Hooper parece ter levado à letra a frase atribuída a Victor Hugo, "A música expressa o que não pode ser dito em palavras mas não pode permanecer em silêncio", algo que cabe paradigmaticamente a "Os Miseráveis", um filme que é demasiado intenso para ficar-se apenas pelas silenciosas palavras.
Com variados números musicais, uns melhor conseguidos do que outros, "Os Miseráveis" revela-se um musical intenso, recheado de magníficos e majestosos cenários (que não são totalmente aproveitados devido à irritante insistência de Tom Hooper nos close-ups), nos quais os personagens vivem intensamente, enquanto procuram atingir os seus objectivos, sejam estes a vingança, redenção, cumprimento da lei, amar, ser feliz, liberdade, enriquecer, entre outros, permitindo aos vários e talentosos nomes do elenco sobressaírem.
 É inacreditável a quantidade de gente talentosa que Tom Hooper conseguiu reunir para o elenco de "Os Miseráveis" e a forma como estes actores e actrizes conseguiram dar vida de forma enérgica e eficaz aos seus personagens. Se Russell Crowe surge sempre uns furos a baixo a nível vocal (não tanto a nível da interpretação e interacção com o espaço cénico), já Hugh Jackman e Anne Hathaway dão um espectáculo soberbode representação e canto, revelando um à vontade magnífico nos respectivos papéis. Não é uma surpresa ver Hugh Jackman como um "animal de palco" capaz de cantar, dançar, representar, sendo muito mais do que Wolverine, tendo em "Os Miseráveis" a prova máxima que é um actor soberbo, assim que tenha os papéis e os filmes indicados para expor o seu talento. Em "Os Miseráveis", Jackman surge arrebatador como Jean Valjean, um indivíduo consumido por um erro do passado, perseguido por Javert, um indivíduo duro e aparentemente pouco dado a sentimentalismos, que segue à risca o código de conduta da polícia. A dinâmica de gato e o rato entre Valjean e Javert ocupa grande parte da narrativa, com ambos a terem o seu destino intrinsecamente ligado, enquanto Jackman e Crowe proporcionam momentos de grande intensidade. É curioso verificar as transformações do personagem de Jackman ao longo do filme, não só a nível físico, mas também psicológico, enquanto entra numa jornada de redenção (após duas epifanias) e fuga ao seu nemesis, colocando sempre os seus valores morais acima de qualquer interesse.
 Os valores morais é uma temática que atravessa parte da narrativa. Valjean segue o caminho da religião e do amor a Deus procurando pensar sempre no próximo e na salvação da sua alma, Javert procura cumprir a lei, o jovem Marius procura defender os seus ideais de justiça e a favor da liberdade, entre outros. Quem pouca oportunidade tem para defender os seus princípios é Fantine, uma jovem mulher que é obrigada a prostituir-se para enviar dinheiro para a sua filha bebé, uma personagem que tem em Anne Hathaway uma intérprete à altura, que proporciona aquele que é provavelmente o melhor momento do filme: Fantine a cantar "I Dreamed a Dream". Hathaway canta, comove, encanta, clama pelo Oscar de Melhor Actriz Secundária, naquele que é provavelmente o grande clímax do filme, embora Tom Hooper não tenha conseguido ter a melhor noção de timing possível, parecendo sempre que este momento  chegou cedo demais, com o cineasta a querer dar o "doce" demasiado cedo aos espectadores (acreditem é um momento de partir o coração).
 Apesar das boas interpretações, da história agradável e das boas sequências musicais, "Os Miseráveis" não está livre de alguns elementos menos positivos, em particular o trabalho de câmara, sendo claramente irritante verificar a utilização abusiva dos close-ups, que procuram exacerbar os sentimentos dos personagens mas tiram a dimensão à narrativa e revelam que Hooper nem sempre consegue estar à altura da sua ambição. Dana Stevens do Slate.com salienta que "Hooper is in love with the low-angle close-up; his camera follows his actors around like a cocker spaniel". O tom sardónico de Stevens serve acima de tudo para colorir algo óbvio a dizer sobre o filme, Hooper filma "Os Miseráveis" como se estivesse a filmar "O Discurso do Rei", esquecendo-se por completo do tom épico que incutiu ao primeiro. Pedia-se mais planos gerais ou de conjunto, menos close-ups, mais exacerbamento dos personagens no meio dos cenários e não estar constantemente a ter face dos actores em todo o seu esplendor, durante momentos mais longos do que o necessário, algo que retira um grande impacto aos números musicais. Diga-se que a câmara "cocker spaniel" de Hooper é um dos vários problemas técnicos do filme, onde a montagem deixa algo a desejar e existe uma procura clara em criar tantos clímaxes que acaba por vezes por esvaziar algum do significado das cenas.
 Existe algo de elogiar e realçar em "Os Miseráveis", que passa pela ambição de Tom Hooper em dar algo de único (pelo lado positivo) ao público, um intenso melodrama recheado de música, boas interpretações, uma miríade de cenários, elaborado guarda-roupa, procurando emular o êxito do espectáculo musical e arrebatar quem pagou o bilhete de cinema. Esta boa vontade de Hooper nem sempre surge reflectida no trabalho final, mas resulta num musical extravagante, intenso, recheado de momentos memoráveis, onde não falta drama, humor (a dupla formada por Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter é um dos pontos altos do filme, proporcionando alguns dos momentos mais divertidos do mesmo), romance (Amanda Seyfried e Eddie Redmayne revelam uma química interessante) e muita música.
 Não se deixe enganar pela extravagância e pelos elementos de drama, romance e algum humor de "Os Miseráveis", pois o filme tem muito mais para dar, conseguindo expressar a fervilhante situação política e social em que se encontrava a França do período representado, culminando com a representação das célebres barricadas da Rua Saint-Denis. Não falta a representação da pobreza extrema (veja-se que o próprio protagonista foi preso por ter roubado comida), o sentimento antimonárquico de alguns sectores da sociedade, a crítica ao sistema legal da época (que condena um indivíduo que roubou pão como se fosse um criminoso), a estratificação social e uma irregular distribuição de riqueza (que leva pessoas como Fantine a terem de cometer actos extremos), entre outros elementos. Ou seja, se quisermos ler um pouco para além daquilo que as imagens em movimento nos dão, podemos encontrar toda uma miríade de elementos que eventualmente podem ou não ser interpretados consoante cada espectador e que eventualmente podem escapar devido a toda a grandiloquência que Hooper procura incutir na obra.
 O arrepio que o final de "Os Miseráveis" pode provocar no espectador é o paradigma de todas as sensações que o filme pode provocar no mesmo. Mais do que procurar uma representação do real, "Os Miseráveis" procura emocionar, pretende despertar emoções no espectador, sejam estas tristeza, alegria, comoção, arrebatamento, apresentando belíssimos números musicais alicerçados numa história sobejamente conhecida mas sempre interessante e num conjunto de boas interpretações. Se não conseguiu ficar completamente convencido com os vários números musicais que povoam a narrativa (e com os excessivos close-ups), o mais provável é que não vá apreciar "Os Miseráveis" e que tenha três horas adequadas ao título do filme. Se deixar-se embalar pelo ritmo do filme e por todo este Mundo fantasioso apresentado por Hooper, o mais provável é que se apaixone pelo musical. No fim, fica a sensação de estarmos perante um musical extravagante e arrebatador, que apela aos nossos sentidos e sentimentos, uma obra cheia de ritmo e emoção que não deixa o espectador indiferente.


Classificação: 4 em 5
Título original: “Les Misérables”.
Título em Portugal: “Os Miseráveis”.
Realizador: Tom Hooper.
Argumento: William Nicholson.
Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Eddie Redmayne, Helena Bonham Carter, Samantha Barks.

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